NOTICIAS: Limitações da Lei de Igualdade Salarial: responsabilidade de todos!!!

- Todo avanço, por mais singelo que seja, deve ser comemorado. Não quero, com isso, dizer que estejamos diante de uma conquista sem muita importância, mas não podemos perder de vista a dimensão do problema que temos a enfrentar [1].
Será preciso muito mais do que uma lei — ou até um conjunto de leis — para que mulheres e homens tenham efetiva igualdade. Quero, aqui, trazer alguns conceitos básicos da filosofia política contemporânea acerca da injustiça estrutural para que possamos lançar um olhar crítico sobre a inovação legislativa e compreender seus limites.
Utilizarei a ideia de injustiça estrutural desenvolvida por Iris Young (1949-2006), filósofa e cientista política da Universidade de Chicago, e uma das principais teóricas do tema. A escolha da autora se deve ao fato de seus estudos terem sido muito influenciados por teorias feministas e por sua abordagem sobre a responsabilidade se amoldar muito bem ao caso das mulheres no mercado de trabalho.
É de conhecimento geral que mulheres ganham menos que homens, se ocupam mais de trabalhos não remunerados, com o cuidado da família e do lar, e são minoria em cargos de chefia e de poder.
Mas vamos aos números [2]
A remuneração média mensal dos homens, em 2022, foi de R$ 2.838, ao passo que a das mulheres foi pouco mais de 21% inferior (R$ 2.235).
A discrepância é ainda mais acentuada quando fazemos um recorte por cor ou raça: homens brancos receberam, em 2022, R$ 3.793, mulheres brancas, R$ 2.858, homens pretos ou pardos, R$ 2.230, e mulheres pretas ou pardas, R$ 1.781.
Outro recorte que demonstra disparidades salariais ainda maiores são aqueles em razão do ramo de ocupação. Mulheres em setores profissionais das ciências e intelectuais recebem remuneração média 36,7% inferior em relação aos homens. Já aquelas que ocupam cargos de direção e chefia receberam, em 2022, remuneração média de R$ 5.870, contra R$ 7.948 recebidos pelos homens nas mesmas posições.
A diferença remuneratória também é fruto da maior participação feminina ou masculina em determinados ramos da economia. No setor identificado pelo IBGE como “informação, financeiro e outras atividades profissionais”, que tem o maior rendimento médio (R$ 3.816), as mulheres ocuparam 42,1% das posições, ao passo que, no setor pior remunerado, o dos serviços domésticos (R$ 1.036), elas eram 91,3%.
As diferenças de gênero também se refletem nos níveis de ocupação. Em média, 46,3% das mulheres estavam ocupadas em 2022 contra 66,6% dos homens. Essa distância, contudo, vai diminuindo quanto maior o nível de escolaridade. Assim é que, entre pessoas sem instrução ou com o ensino fundamental incompleto, 23,5% das mulheres estavam ocupadas contra 50,4% dos homens. Já entre aqueles com nível superior completo, a taxa de ocupação era de 73,7% para as mulheres e 84,2% para os homens.
As mulheres também gastam mais horas nos cuidados não remunerados com a família e com o lar. Em 2022, elas dedicaram, em média, 21,3 horas por semana nestas atividades contra 11,7 horas despendidas pelos homens.
Quando se faz um recorte por renda, “as mulheres que faziam parte dos 20% com os menores rendimentos, em 2022, dedicaram 7,3 horas a mais ao trabalho doméstico não remunerado que aquelas situadas nos 20% com os maiores rendimentos” [3]. Isso porque mulheres com melhor situação financeira conseguem contratar o trabalho doméstico remunerado, delegando as atividades de cuidados e/ou afazeres domésticos. Ocorre que essa delegação é feita sobretudo a outras mulheres, já que elas são mais de 91% das pessoas ocupadas em serviços domésticos remunerados.
Outra consequência desta divisão das tarefas não remuneradas é a maior participação feminina em contratos de trabalho a tempo parcial – até 30 horas por semana. Enquanto 28% das mulheres estão nesta situação; entre os homens, os trabalhadores em tempo parcial são apenas 14,4%.
Teto de vidro
Mesmo em ambientes em que se observa grande evolução quanto à participação feminina, como no Judiciário, por exemplo, há uma barreira invisível (teto de vidro) para que elas ocupem cargos mais elevados. Dados do CNJ mostram que, também em 2022, no primeiro grau de jurisdição, 40% dos magistrados eram mulheres, ao passo que as desembargadoras e ministras era apenas 25%.
Por fim, mulheres são pouco representadas politicamente. Embora constituam 52,7% do eleitorado e a despeito da obrigatoriedade de observância das cotas nas candidaturas prevista na Lei nº 12.034/2009, elas eram apenas 17,9% dos deputados federais em exercício em 2023. O Brasil ocupa o último lugar dentre os países da América Latina em termos de igualdade de distribuição de posições políticas entre gêneros e o 133º lugar mundial – dentre 186 nações analisadas.
Lei de Igualdade Salarial
O projeto que deu origem à Lei nº 14.611/2023, de iniciativa do Poder Executivo, propunha obrigar “a igualdade salarial e remuneratória entre mulheres e homens e cria[r] meios para que a desigualdade seja verificada, punida e sanada, contribuindo para a garantia de direitos das trabalhadoras” [4].
A lei sancionada inseriu dois parágrafos no artigo 461 da CLT — que trata da equiparação salarial — e criou mecanismos de fiscalização e transparência no seu cumprimento, canais específicos para denúncias, punição mais severa para os que a descumprirem, além de obrigar a publicação periódica de relatórios com informações salariais e remuneratórias para empresas com mais de cem empregados.
No entanto, os números aqui apresentados deixam claro que a mulher é mais mal remunerada do que o homem não apenas por uma falta de equiparação salarial no ambiente de trabalho, mas porque está em setores menos valorizados da economia, não dispõe de tanto tempo para se dedicar ao trabalho remunerado quanto o homem, não consegue muitas vezes vencer as barreiras invisíveis para ocupar posições de chefia e liderança.
Talvez sob essa ótica, a maior contribuição da lei seja a consolidação e a publicação periódica de dados pelo Poder Executivo federal a respeito do mercado de trabalho e renda da mulher, inclusive com indicadores sobre violência contra a mulher, vagas em creches públicas, acesso à formação técnica e superior, serviços de saúde e outros dados que tenham impacto no acesso ao emprego e à renda e que possam orientar a elaboração de políticas públicas (artigo 5º, §4º).
Mudanças estruturais
Como disse no início, não se pode deixar de aplaudir iniciativas como as da Lei nº 14.611/2023. Aliás, parte do problema pode até ser resolvido a partir delas. No entanto, precisamos enxergar a realidade sob uma perspectiva ampla e compreender que apenas mudanças estruturais podem alterar esse quadro.
Uma estrutura social pode ser definida como o conjunto de “resultados acumulados das ações das massas de indivíduos que executam os seus próprios projetos, muitas vezes sem coordenação com muitos outros” [5]. Comumente, tais ações produzem resultados não desejados por nenhum dos agentes participantes.
A partir desse conceito, muitos filósofos vão se dedicar a estudar o que caracteriza determinada estrutura social como justa ou injusta. Para alguns [6], a injustiça é um problema simplesmente de distribuição, não apenas distribuição de recursos, como também de posições e encargos entre os membros da sociedade. Para essa concepção de justiça, a distribuição adequada desses elementos leva a uma estrutura social justa.
Para outros, essa visão é um pouco estreita. Isso porque não leva em conta o conceito de grupo social como “um conjunto de pessoas diferenciadas de ao menos um outro grupo por motivos culturais, por suas práticas, (…) estilo de vida” [7] ou identidade. Comumente, nas concepções meramente distributivas de justiça, leva-se em consideração o indivíduo — e a sua busca pela felicidade e concretização de seus planos de vida —, pelo que a preocupação com a diferença geralmente é tratada em temos de grupos mais ou menos favorecidos. Falta ou é insuficiente, nestas abordagens, o aspecto coletivo.
A justiça social, portanto, não significa a eliminação das diferenças entre os grupos sociais – o que seria até mesmo impossível, por se tratar de uma questão de identidade –, mas sim permitir que todos os grupos possam ser respeitados na sociedade.
Nesta acepção mais ampla, uma estrutura social justa deve contar com “condições institucionais necessárias ao desenvolvimento e exercício das capacidades individuais e da comunicação e cooperação coletiva” [8]. Assim, uma sociedade justa é aquela em que os grupos sociais estão livres de opressão e de dominação, e, portanto, em que os indivíduos podem, respectivamente, autodesenvolver-se e autodeterminar-se.
Os números aqui apresentados deixam claro que as mulheres constituem um grupo social oprimido e dominado, o que é resultado do funcionamento da própria estrutura social em que vivemos. Confirmam, ainda, que há outros grupos sociais com os quais as mulheres podem se identificar e, a depender deles, podem estar em situações de maior ou menor opressão ou dominação. É o caso, por exemplo, da mulher negra em relação à mulher branca.
Certamente, com a efetiva fiscalização do cumprimento da lei, dentro de uma mesma empresa e realizando a idêntica função, uma mulher vai ganhar o mesmo que um homem. No entanto, questões como por que mulheres se engajam mais em atividades com pior remuneração, por que mulheres não estão em mais cargos de chefia ou por que elas são as mais ocupadas nas tarefas de cuidado não remuneradas não podem ser inteiramente atribuídas à conduta de uma empresa ou de um grupo de empresas.
Em situações como esta, em que há clara injustiça, devemos diferenciar as ideias de culpa e de responsabilidade [9]. A culpa é relacionada a ações passadas e pode ser atribuída a algum indivíduo ou empresa identificável que, diretamente e com sua própria ação ou omissão, tenha contribuído para o resultado. Para estas situações, iniciativas como as punições previstas na lei são ideais. Repara-se o dano e evita-se a reincidência.
Contudo, a ideia de culpa pode nos distrair e impedir que reconheçamos efetivamente nossa responsabilidade na injustiça praticada. A responsabilidade se distingue da culpa na medida em que ela analisa a ação presente dos indivíduos e seus possíveis efeitos no futuro. Além disso, a responsabilidade dificilmente é individual. Ao contrário, é coletiva e consiste na observação do funcionamento das instituições, no monitoramento de suas ações e na manutenção de um espaço público de diálogo.
Não apenas os indivíduos que sofrem as injustiças — neste caso, as mulheres — devem se engajar politicamente para garantir que instituições funcionem de maneira mais justa e para pleitear mais voz e poder. Em especial aqueles que, mesmo sem agirem deliberadamente para tanto, se encontram em posições privilegiadas e que são beneficiados por essa mesma estrutura – e aqui falo dos homens como grupo social contraposto ao das mulheres –, têm grande responsabilidade política, até mesmo porque estão entre aqueles com maior representatividade política e poder.
E, por isso, é muito importante nos afastarmos da ideia de culpa — já dizia Hanah Arendt que, “onde todos são culpados, ninguém é” —, já que ela produz reações de defesa, e nos aproximarmos da ideia de responsabilidade, que leva à ajuda cooperativa.
A ideia de responsabilidade nos leva a agir e, no mínimo, a questionar por que práticas sociais, políticas e econômicas arraigadas na nossa estrutura social levam a um resultado injusto para determinados grupos.
Um dos pontos mais interessantes da lei é a publicação semestral de relatórios de transparência salarial e de critérios remuneratórios pelas empresas com cem ou mais empregados (artigo 5º). O acesso a esse tipo de informação permitirá que a sociedade civil cobre destas empresas tratamento mais justo com relação às mulheres e pode levar, até mesmo, a ações de boicote — muitas vezes mais eficientes que qualquer medida legal, como mostram as experiências com a indústria da moda e a exploração exaustiva e alijada de direitos da mão de obra ou, ainda, o recente caso de trabalho análogo à escravidão em empresas engajadas na produção de vinho do sul do país.
Ainda que a inconstitucionalidade da publicação de tais relatórios venha a ser declara pelo Supremo Tribunal Federal (ADI 7.612 e ADI 7.631), havendo cobrança por parte da sociedade que venha a abraçar esta causa, nada impede que algumas empresas divulguem espontaneamente seus dados e queiram, realmente, criar um ambiente justo e igualitário quanto ao gênero para seus empregados, ainda que seja apenas para promover sua imagem ou não afastar consumidores.
Uma vez que tomamos consciência das injustiças estruturais e reconhecemos nossa responsabilidade coletiva na transformação da sociedade, podemos moldar nossas ações em vistas a uma transformação.
Obviamente, decisões diretamente relacionadas à posição das mulheres no mercado de trabalho, como escolher qual empregado contratar ou promover ou, ainda, fixar critérios remuneratórios, afetam sua condição. Mas não podemos esquecer que pequenos gestos ou hábitos de nosso próprio cotidiano, como a forma como educamos as crianças, dividimos os afazeres domésticos e escolhemos em quem votar, além de termos empatia com mulheres, buscarmos conhecimento e disseminar informações sobre questões de gênero, apoiar o empoderamento feminino e reprimirmos falas e ações machistas ou misóginas, têm peso relevante na construção de uma sociedade mais justa, inclusiva e solidária, e verdadeiro potencial de mudar o rumo das coisas.
[1] Esse texto consiste na fala da autora em evento sobre o tema ocorrido no Instituto dos Advogados Brasileiros (IAB) em 23/5/2024.
[2] Os dados apresentados foram coletados das seguintes fontes: BRASIL, Conselho Nacional de Justiça (CNJ). Participação feminina na magistratura: atualizações. Brasília, DF: CNJ, 2023; IBGE. Estatísticas de gênero: indicadores sociais das mulheres no Brasil. 3ª edição. IBGE: 2024; e IBGE. Síntese de Indicadores Sociais: uma análise das condições de vida da população brasileira 2023. Rio de Janeiro: IBGE, 2023.
[3] IBGE, 2024.
[4] Trecho da justificativa do projeto de lei, assinada pela ministra das Mulheres, Aparecida Gonçalves, e pelo ministro do Trabalho e Emprego, Luiz Marinho.
[5] YOUNG, Iris Marion. Responsibility for justice. Nova York: Oxford University Press, 2011, p. 62.
[6] Exemplo de autor que defende um paradigma distributivo é John Rawls, em sua ora “Uma teoria da justiça”.
[7] YOUNG, Iris Marion. Justice and the politics of difference. Princeton: Princeton University Press, 2022, p. 43.
[8] Young, 2022, p. 39.
[9] Aqui são usados os conceitos de “culpa” e “responsabilidade” adotados por Young, 2011.
Fernanda Cabral de Almeida
é doutoranda e mestre em Direito do Trabalho e Previdenciário pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj), membro honorário da Comissão de Direito do Trabalho do Instituto dos Advogados Brasileiros (IAB) e servidora do Tribunal Regional do Trabalho da 1ª Região. FONTE - Consultor Juridico.